quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Tráfico de vidas

Praias, grande potencial turístico, estradas, rodovias, tudo isso há nos principais estados do Brasil. E como tudo tem o seu lado bom e o seu lado ruim, em relação às “belezas” existentes no Ceará, por exemplo, não é diferente. Obviamente que é ótimo atrair turistas para aumentar a renda do estado. Obviamente também que nem todo turista traz lucro para a cidade que o acolhe.

Realidade

O turismo sexual é um dos fatores mais preocupantes que envolvem a criança e o adolescente contemporâneos. De acordo com a Organização Mundial de Turismo (OMT), turismo são as atividades que as pessoas realizam durante suas viagens e permanências em lugares distintos dos que vivem, por um período de tempo inferior a um ano consecutivo, com fins de lazer, negócios e outros. Acontece que alguns turistas exercem seu papel incorretamente. Geralmente, esses são os que saem de sua terra natal justamente por terem cometido práticas ilícitas no país de origem. E, em busca de uma atividade que proporcione lucro e prazer para si próprios, escolhem o turismo sexual como fonte de riquezas pessoais. Segundo o relatório do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes na América Latina e Caribe, turismo sexual é a exploração de meninos, meninas e adolescentes por visitantes, em geral, procedentes de países desenvolvidos ou mesmo turistas do próprio país, envolvendo a cumplicidade por ação direta ou omissão de agências de viagem e guias turísticos, hotéis, bares lanchonetes, restaurantes e barracas de praia, garçons e porteiros, postos de gasolina, caminhoneiros e taxistas, prostíbulos e casas de massagem, além da tradicional cafetinagem. Tão concreto é o fato, que esses turistas sempre arranjam algum jeito de estabelecer-se no Brasil, seja tendo filho com alguma brasileira, seja casando-se com elas ou até estabelecendo algum empreendimento comercial “lícito”.

Nada de relacionamentos ocasionalmente amorosos, duradouros, com alguém que resida na terra escolhida pelo turista. Fala-se de um sistema catastrófico que deve ser combatido. Pode-se afirmar que a noção de superioridade do colonizador é transferida para a relação existente entre o turista e a “nativa”. Já que o colonizador é o dono, o colonizado tem mais é que obedecer e aceitar as imposições do chefe. É possível? Claro! A grande expansão, urbanização, das cidades fez com que surgissem periferias que servem como abrigo para pessoas que imigram da zona rural para a urbana em busca de oportunidades. Logo, por não haver, ficam sujeitas a todo tipo de exploração. Os cafetões se aproveitam da ingenuidade dos desfavorecidos social e economicamente para iludi-los, prometendo condições melhores de vida caso aceitem fazer sexo com futuros clientes.

Pelo fato de o Nordeste ser a região mais alvo de desigualdades, é o local mais procurado pelos estrangeiros para praticar o tráfico de crianças e adolescentes com o intuito destes oferecerem sexo para italianos e holandeses principalmente.

Todo o quadro de exploração e turismo sexual de crianças e adolescentes é resultante de um descaso que torna essas pessoas vítimas de opressão e desigualdade. Na primeira gestão do presidente Luis Inácio Lula da Silva, uma de suas promessas era acabar com a exploração sexual de crianças e adolescentes. Entretanto, os números ainda são revoltantes. O Brasil está em segundo lugar no ranking mundial de turismo sexual; a Tailândia é a campeã até agora. Renato Roseno, advogado que atua na área dos Direitos Humanos, afirma: “o Brasil tem 5.562 municípios e menos de 10% deles têm políticas públicas para atender às vítimas de violência sexual. Outro exemplo: em todo o território nacional só há varas especializadas em crimes contra crianças em quatro estados: Salvador, Recife, Fortaleza e Belém. As delegacias de combate à exploração da criança e do adolescente também não passam de duas dezenas”.

É importante lembrar que abuso é diferente de exploração. Quando há proveito de um suposto poder em relação à outra pessoa, tem-se o abuso. Quando há relações de troca, principalmente capitalistas, há exploração.

Crianças e adolescentes não se prostituem, as circunstâncias que as tornam prostitutasJá não é raro ouvir pessoas afirmarem que o Brasil é o país do futebol e do carnaval. Italianos, holandeses, norte-americanos, ingleses, franceses, enfim, não-brasileiros já criaram uma imagem do Brasil: o país da mulher gostosa e dos craques futebolísticos. Para que propaganda melhor do que essa “foto” mental? Qual homem que não gosta de mulher bonita? Qual homem não gosta de futebol? Os turistas buscam mulheres hiper-erotizadas, e é aqui que eles as encontrarão. É claro que muitos têm o Brasil como o paraíso. No entanto, esse paraíso torna-se o inferno quando pessoas mal intencionadas passam a abusar e usar crianças e adolescentes para o tráfico sexual. Essas vítimas são aquelas mesmas vítimas da desigualdade social, vítimas da hipocrisia humana. “Não há consentimento por vontade de fazer sexo.”, afirma Roseno. Essas crianças e adolescentes tornam-se produtos comerciais sexuais por serem ingênuas e, por isso, totalmente iludidas. Elas chegam a pensar que quando chegarem em outros países terão uma vida melhor. Então, quando chegam nesses países, nem direito ao próprio passaporte (que muitas vezes é falso) elas têm. São aprisionadas e totalmente escravizadas. A omissão e hipocrisia de muitas outras pessoas envolvidas indiretamente também ajudam o desenvolvimento da prática do turismo sexual. Aquelas que fornecem hotéis, transporte, alimentação para os traficantes do sexo.

“Não tenho medo de ir embora com alguém que mal conheço. Tenho medo é de passar fome no Brasil”Zé, um taxista que faz ponto em frente a um hotel quatro estrelas da Beira-Mar, diz: “Sou independente, não ganho dinheiro das meninas. Só que tenho amigas. Às vezes, o gringo pede companhia e falo delas. O turista vem usufruir de coisas boas, e mulher é uma delas. Ele gera emprego, faz a sua parte. As meninas são pobres, não têm o que comer. Qual o problema de elas conhecerem alguém que pague coisas boas?” Ingenuidade do Zé pensar assim. Mal sabe ele por que situações essas meninas podem passar. A violência sexual praticada contra as crianças e os adolescentes podem trazer conseqüências gravíssimas. Como problemas de desenvolvimento físico, psíquico, social e moral. Muitas vezes, essas conseqüências são causadoras de outros quadros que preocupam a sociedade brasileira. O uso de drogas, a gravidez precoce, distúrbios de comportamento, infecções por doenças sexualmente transmissíveis são alguns deles.

“Não tenho medo de ir embora com alguém que mal conheço. Tenho medo é de passar fome no Brasil”, afirma uma das muitas garotas que são vítimas da falta de educação e informação. O italiano Francesco, “consumidor” da menina, diz: “drogas e mulheres têm na Europa, mas aqui o sexo é mais barato e fácil”.

As agências que “organizam” as viagens das mulheres geralmente operam pela Internet. Há sites que trazem fotos de mulheres seminuas em posições eróticas, preços das garotas e até mesmo catálogos para determinadas temporadas. Com isso, o cliente pode escolher a menina antes mesmo de chegar ao Brasil. Os pacotes estão na faixa de 2.300 euros. Para escolher a garota basta fazer seu cadastro on-line no site, indicando seu tipo de mulher, informando ainda a faixa etária que deseja e a cor de pele.
Para Iara Brasileiro, Coordenadora do Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília (UnB), “os dados são preocupantes não só aqui. Numa cidade onde há apenas um caso de exploração, há preocupação porque o número pode aumentar e atingir patamares maiores”. Iara ainda fala que os fatores sociais também são causadores do quadro: “o que nós precisamos é tornar visível este problema e acabar com aquela cultura de que isto é normal. Não é normal porque estamos tratando de crianças, e não de objetos à venda”.
A solução para Edna da Mata, promotora da 12ª Vara Criminal (Crimes contra Crianças e Adolescentes), é uma maior participação da comunidade para combater a exploração sexual. Entretanto, segundo a promotora, o problema não se restringe só à exploração: “também temos que cuidar da questão do abuso sexual. O abuso é o caso intrafamiliar, cometido por parentes ou vizinhos, sem pretensão de lucro”.

Está no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.

Art. 82. É proibida a hospedagem de criança ou adolescente em hotel, motel, pensão ou estabelecimento congênere, salvo se autorizado ou acompanhado pelos pais ou responsável.

Art. 131. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei.

Art. 244-A. - Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2º desta lei, à prostituição ou à exploração sexual.” “Pena - reclusão de quatro a dez anos, e multa.”“§ 1º Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas referidas no caput deste artigo.” “§ 2º Constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento”.

Otimismo

O que vale a pena mostrar são as ações que organizações estão fazendo para combater o turismo sexual. O Brasil tem um plano que tem o intuito de oferecer apoio às vítimas, prevenção e responsabilização do crime: é o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP). O Unicef também é fundamental na luta contra o abuso e a exploração sexual infanto-juvenil. A Grã-Bretanha é um dos países que se preocupam bastante com o tráfico sexual. Pentameter 2 é o nome da operação criada pelo britânicos para destruir gangues que forçam mulheres e crianças a trabalhar na indústria do sexo. Focando-se no Ceará, há a Associação das Prostitutas do Ceará (Aproce), que desenvolve ações contra a prostituição infantil.

18 de maio é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. A data foi estabelecida em 2000. O 18 de maio foi escolhido porque foi o dia em que ocorreu um ato de violência revoltante contra Araceli Sanches, em 1973, que abalou a sociedade brasileira. Araceli tinha apenas 8 anos, quando foi estuprada e logo após assassinada em Vitória, Espírito Santo. No entanto, as pessoas não devem ter consciência da gravidade do fato somente no dia 18 de maio de cada ano, e sim todos os dias. Porque todos têm o dever de defender os direitos da criança e do adolescente. Fingir não ver ou não saber do quadro só piora e permite o desenvolvimento dessas quadrilhas que traficam as infâncias brasileiras.

O Ceará ocupa a 13° posição do ranking nacional de denúncias contra a exploração sexual de crianças e adolescentes. As denúncias são feitas pelo “Disque 100”, um serviço de discagem direta e gratuita coordenado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH). Desde a criação do serviço telefônico em 2003, houve mais de 43 mil ligações no país, segundo dados do Ministério do Turismo. Das 43 mil, mais de 13 mil são da região nordestina, sendo 86 ligações de Fortaleza e 21 dos outros municípios cearenses.

Em caso de alguma violação dos direitos infanto-juvenis, todos devem procurar os conselhos tutelares, que são encarregados de zelar pelo cumprimento das crianças e dos adolescentes; as varas da infância e da juventude, que exercem o papel dos conselhos quando não há destes no município; ou ligar para 0800 99 0500, que funciona de segunda à sexta, das 8 às 18h. Não precisa ter medo de denunciar. Milhares de crianças e adolescentes com certeza podem ser salvos por uma denúncia que você faz.

É importante ter consciência de que cada membro da sociedade tem o papel de proteger suas crianças e adolescentes.
Por Marcos Montenegro, ViraJovem do Ceará

Nenhum comentário: